terça-feira, 31 de março de 2009

FARTURA

Era o ano de 1982 e a campanha eleitoral estava começando a esquentar, os comícios cada vez mais cheios, o público comparecia atraído tanto pela novidade do princípio de abertura política que acabaria com um regime que já dava sinais de agonia, como pela curiosidade de conhecer os candidatos e suas propostas. Isso porque só o partido da situação tinha condições financeiras para contratar artistas para servir de chamariz e atrair público. A oposição era só no discurso mesmo.

Naquela época eu trabalhava na Tribuna de Alagoas, situada na Rua do Sol, Centro de Maceió e tinha sido convidado pelo candidato majoritário da oposição para trabalhar como fotógrafo da campanha. Não poderia imaginar que iria topar pelo caminho com algumas situações fora das minhas previsões, que nada tinham a ver com a minha profissão de retratista e sim, com a de fazedor de rimas. Na verdade, eu sempre gostei da idéia de ser metido a escrevedor de versos, mas não passava pela cabeça que eu devia ser dizedor de versos. Dizedor sim, pois declamador já era demais da conta.

Estávamos naquele final de semana percorrendo as principais cidades do alto sertão alagoano e tínhamos como ponto de apoio Delmiro Gouveia. Os comícios aconteciam nas cidades vizinhas, mas a gente dormia em Delmiro, onde encerraríamos aquela jornada com um grande comício no domingo, pois o sábado estava reserva para os governistas.

Só que no sábado a noite, quando chegamos à cidade para dormir, ainda estava acontecendo o comício do candidato da situação, eu, por curiosidade fui ver a festa dos outros e cheguei justamente na hora em que o candidato a governador estava iniciando sua fala, que seria também, a última da noite.

Naquele instante, no sertão, que já fazia alguns anos, sofria com uma seca terrível, começou cair alguns tímidos pingos de chuva, fato que motivou o candidato a desviar um pouco do seu roteiro discursivo para fazer a seguinte fala: “Vocês estão vendo meus irmãos sertanejos, que o que a gente está pregando aqui é a pura verdade. E tanto é verdade o que eu digo que até São Pedro se emocionou tanto, que chorou para com suas lágrimas irrigar a terra sertaneja e todos nós sabemos que a terra sertaneja irrigada é sinal de fartura...”

Antes que ele terminasse totalmente o seu raciocínio, um caboclo no meio da multidão tirou o chapéu de couro da cabeça, com a mão esquerda segurou-o na altura do peito, levantou a mão direita e gritou: “Dotô, num peça mais fartura pra nóis não, que aqui já tá fartando tudo!”

No dia seguinte, durante o café da manhã relatei aos presentes, inclusive para o nosso candidato a governador, o lance do caboclo no comício da situação. Todo sorriu um pouco e pensava eu, a coisa tinha parado por ali. Engano, chegou a hora do nosso comício, a principal rua do Centro da cidade estava tomada pelo povo e eu lá tirando as fotos que seriam publicadas na edição da terça-feira da Tribuna de Alagoas.

Zé da Feira como estão os versos, perguntou-me o candidato a governador e eu respondi: sempre escrevendo e guardando. Ele continuou: mas você só escreve e não declama? Eu disse: porque eu escrevo literatura de cordel, são estórias longas. Ele voltou à atenção para o comício e eu para a minha atividade.

Aproximava-se o momento da fala do candidato ao governo, eu estava em baixo, na frente do palanque e ele fez sinal para que eu subisse, pensei que seria para dar alguma sugestão de fotos, mas... Surpresa. Ele pediu para segurar o meu equipamento e falou para o locutor: antes de mim anuncie o Zé da Feira que ele vai fazer uns versos pra descontrair o povo. Gelei de cima a baixo. Acho que nunca tremi tanto na minha vida. O que iria falar, pelo amor de Deus? De repente veio a idéia, contar a história da noite anterior completando com uns versos que teria que fazer de improviso.

Ainda tinha uns de cinco minutos até eu ser anunciado. Respirei fundo, rememorizei a história e tentei imaginar alguns versos para completá-la. Mas o mais difícil, ainda era controlar a tremedeira. Lá fui eu para os microfones, onde fui buscar coragem? Não sei. Mas contei a história certinha e caboclo da noite anterior se identificou no meio da multidão, confirmando o que eu estava falando, então aproveitei a deixa e soltei: pois bem, já que o “homem” ontem falou de fartura, vamos contar do nosso jeito como é de verdade toda essa fartura.

E saiu, não sei como, os seguintes versos:

Quem tem dinhêro e pudê
Num sabe o que é vida dura,
Num conhece a miséra,
A dor, a fome, a amargura;
O rico é abastecido
Num é coma nóis desnutrido
No mei de tanta fartura!

E toda essa fartura
Vô lhe dizê Cuma é:
É fartá casa pra morá
E dinhêro pru alugué;
Farta saúde, inducação,
Farta farinha, fejão,
Farta pão, leite e café!

Farta trabáio, emprego,
Farta terra pra prantá,
Pra nóis póbe farta tudo
Qui si possa imaginá
E cum tanta fartura assim,
Toda peste de ruim
Pra nóis nunca vai fartá!

A partir daquela noite, estava selada a minha sorte também com dizedor de versos.

Um comentário:

Paulinha Felix disse...

Olhos e ouvidos sempre atentos, desse fotógrafo que também é poeta. Ou seria o contrário?

Um belo texto que retrata a realidade do nosso Estado há 20 anos, mas que é muito atual!

Adorei!